Nos últimos anos, os avanços na tecnologia de monitorização da glicose têm levantado um debate importante entre os especialistas: será que os critérios que usamos atualmente para diagnosticar o diabetes precisam ser atualizados?
Com o uso cada vez mais comum da monitorização contínua da glicose (CGM), estamos aprendendo que muitas pessoas com exames de sangue aparentemente normais podem já apresentar variações glicêmicas sutis — que não aparecem nos exames tradicionais, mas que indicam um risco aumentado para o desenvolvimento do diabetes tipo 2.
Um artigo recente publicado em 2025 na revista Diabetes/Metabolism Research and Reviews aborda exatamente esse tema e sugere que a CGM pode ajudar a identificar precocemente alterações no metabolismo da glicose, permitindo intervenções mais eficazes e personalizadas.
Como é feito o diagnóstico de diabetes atualmente?
Segundo os critérios atuais, o diagnóstico de diabetes tipo 2 é baseado em pelo menos um dos seguintes resultados laboratoriais:
Glicemia de jejum ≥ 126 mg/dL
Glicemia ≥ 200 mg/dL após 2 horas em teste oral de tolerância à glicose (TOTG)
Hemoglobina glicada (HbA1c) ≥ 6,5%
Glicemia casual ≥ 200 mg/dL em presença de sintomas
Para o diagnóstico de pré-diabetes, os valores ficam entre:
Glicemia de jejum: 100–125 mg/dL
HbA1c: 5,7–6,4%
Glicemia de 2h no TOTG: 140–199 mg/dL
Embora esses critérios sejam amplamente utilizados, eles representam apenas uma fotografia pontual da glicemia, sem revelar o comportamento da glicose ao longo do dia, especialmente em resposta às refeições.
O que a CGM oferece de diferente?
A monitorização contínua da glicose (CGM) permite acompanhar a glicemia de forma contínua, por vários dias seguidos, gerando dados sobre:
Glicemia em tempo real, 24 horas por dia
Resposta da glicemia às refeições e ao sono
Variações noturnas
Tempo dentro da faixa-alvo (TIR – Time in Range)
Ocorrência de hiperglicemias e hipoglicemias leves
Esse tipo de informação tem revelado que pessoas sem diagnóstico formal de diabetes ou pré-diabetes já podem apresentar padrões glicêmicos alterados, como picos após as refeições e maior tempo em hiperglicemia leve.
O que os estudos mais recentes mostram?
O artigo de 2025 cita um estudo com mais de 2.500 pessoas fisicamente ativas que não tinham diagnóstico de diabetes. Entre os achados:
Muitos participantes apresentavam glicemias acima de 180 mg/dL após refeições, mesmo com exames laboratoriais normais.
Mulheres tendiam a passar mais tempo em hipoglicemia leve durante a noite.
A resposta glicêmica variava conforme idade, sexo, índice de massa corporal e tipo de exercício.
Esses dados reforçam que os padrões glicêmicos diários são mais dinâmicos e diversos do que se pensava — e que o modelo atual de diagnóstico pode deixar de fora casos precoces de disfunção metabólica.
Tempo na faixa-alvo (TIR): um novo parâmetro promissor
O TIR (Time in Range) corresponde ao tempo em que a glicemia permanece entre 70 e 140 mg/dL, considerado o intervalo ideal.
Um estudo observacional mostrou que:
Indivíduos sem diabetes passam 87% do tempo dentro da faixa.
Pessoas com pré-diabetes passam 77%.
Pacientes com diabetes tipo 2 passam, em média, 46% do tempo nessa faixa.
Quando o TIR é mais baixo, o risco de desenvolver diabetes e suas complicações se eleva. Além disso, maior variabilidade glicêmica ao longo do dia está associada a resistência à insulina e lesões vasculares.
E a glicemia 1 hora após a refeição?
Outro dado interessante: a glicemia 1 hora após carga de glicose (durante o TOTG) parece ser um marcador mais sensível do que a glicemia de 2 horas.
📊 Em uma meta-análise com mais de 35 mil pessoas, um valor de:
≥ 208 mg/dL (11,6 mmol/L) na 1ª hora
foi preditivo de diabetes tipo 2 com 92% de sensibilidade e 91% de especificidade — muito mais eficaz do que o exame tradicional.
💡 Isso levanta a possibilidade de mudarmos os critérios diagnósticos nos próximos anos, dando mais atenção à 1h pós-prandial, TIR e padrões de CGM.
CGM pode prever quem vai desenvolver diabetes?
Os dados são promissores. Em estudos de acompanhamento:
Pessoas que passavam mais tempo com glicemias acima de 180 mg/dL (mesmo que de forma leve) tinham maior risco de desenvolver diabetes nos anos seguintes.
Aqueles com TIR elevado (acima de 90%) mantinham níveis normais por mais tempo, mesmo com histórico familiar ou pré-diabetes.
Em outras palavras, a CGM pode identificar padrões silenciosos de disfunção glicêmica antes que os critérios diagnósticos tradicionais sejam atingidos.
E quanto às complicações do diabetes?
A pesquisa também mostra que a variabilidade glicêmica é um fator de risco importante para complicações microvasculares (retinopatia, nefropatia) e macrovasculares (infarto, AVC).
TIR mais alto está associado a menor risco de complicações e menor mortalidade.
Já oscilações frequentes da glicose (picos e quedas) aumentam o risco cardiovascular e inflamatório, mesmo em pessoas que ainda não têm diabetes diagnosticado.
E os desafios do uso da CGM para diagnóstico?
Apesar do enorme potencial, ainda existem barreiras para o uso da CGM como ferramenta diagnóstica:
Custo: os sensores ainda têm valor elevado .
Acesso: ainda é mais comum em centros especializados.
Falta de padronização: não há, por enquanto, consenso sobre os valores-alvo específicos para diagnóstico em CGM.
Diferença com métodos tradicionais: os sensores medem glicose no líquido intersticial (não no sangue), o que pode causar pequenas discrepâncias.
Mesmo assim, a tendência é clara: a CGM será cada vez mais usada como ferramenta complementar no diagnóstico e na prevenção do diabetes.
O que isso muda na prática clínica?
Para você, paciente, isso significa que mesmo com exames laboratoriais normais, é possível ter alterações no padrão glicêmico que indicam risco aumentado para diabetes.
Por isso, avaliar seu padrão glicêmico com mais profundidade, especialmente se você tem fatores de risco, pode fazer toda a diferença.
A boa notícia é que quanto mais cedo detectamos essas alterações, mais eficaz é a prevenção — com mudança de estilo de vida, acompanhamento e, se necessário, uso de medicamentos que retardam ou evitam o aparecimento da doença.
Quando procurar avaliação médica?
Considere conversar com um endocrinologista se você:
Tem histórico familiar de diabetes
Está com sobrepeso ou obesidade
Já teve diabetes gestacional
Tem gordura no fígado
Apresenta síndrome dos ovários policísticos (SOP)
Teve exames de glicemia ou HbA1c limítrofes
Nesses casos, a monitorização com CGM pode ser uma ferramenta útil para compreender melhor seu metabolismo e tomar decisões mais informadas sobre sua saúde.
Conclusão: um novo olhar sobre a glicose pode mudar o futuro da sua saúde
A tecnologia está nos mostrando que o diabetes não começa de forma súbita, mas se desenvolve ao longo do tempo, muitas vezes com sinais sutis que os exames tradicionais não detectam.
Ao adotar uma abordagem mais individualizada e baseada em dados, podemos identificar alterações precoces, prevenir complicações e oferecer um tratamento mais eficaz e menos invasivo.